ARTIGO/Brasília-DF, 26/12/2017:
A ORTOGRAFIA DA DENÚNCIA
Marcos Fabrício Lopes da Silva*
Entendemos as narrativas literárias como expressão do imaginário social de determinado contexto histórico, traduzindo-se em importantes recursos para se evocar as experiências do viver, sobretudo, como intersecções entre o sujeito e a realidade, e possibilitando o olhar crítico, capaz de desconstruir paradigmas firmados como verdades, não obstante, dissonantes das especificidades que permeiam o corpo social. Vidas secas (1937), de Graciliano Ramos, conta uma história carregada de dramas acerca da vida difícil de uma família de retirantes que foge da seca, composta por Fabiano, sinha Vitória, e os dois filhos do casal, chamados de “o mais novo” e o “mais velho”, além da cachorra Baleia e um papagaio, animais de estimação que se integram ao grupo. Todo o enredo se passa em espaços do sertão nordestino, onde a condição de vida da família (e de seus animais) é a mais adversa possível. Eles vivem apenas como ocupantes temporários, transitórios moradores em fazendas alheias e abandonadas.
Esteticamente, chama-nos atenção o oximoro presente na escolha da nomeação da personagem: sinha Vitória. Isso ocorre porque utilizar sinha e não sinhá pode ser compreendido de duas formas, uma respeitosa e outra pejorativa: por um lado, como uma marca do socioleto regionalista, uma forma local de tratamento reverencial; por outro, como a depreciação do tradicional sinhá, significando uma pessoa qualquer, privada de relevância e que não nos desperta respeito. Enquanto sinhá, palavra constituída de um metro iâmbico, exibe uma carga semântica muito representativa dentro do contexto sócio-histórico nacional por ser a forma de tratamento dispensada pelos escravos às suas senhoras, suas patroas, quem, de certa forma, dispunham de todos os direitos, exercendo até mesmo o domínio sobre suas vidas, sinha, em si um troqueu, apesar de ser, semanticamente, uma variação, apresenta um efeito rítmico diferenciado, contrastando a carga semântica respeitosa com a acentuação desesperançada.
Convém informar que o “iambo” é a uma forma métrica constituída de uma sílaba fraca seguida de uma forte e utilizada, em algumas línguas europeias modernas como o inglês e o alemão, para designar a poesia heroica; o “troqueu”, por sua vez, é constituído de uma sílaba forte e uma fraca e frequentemente empregado para significar um tom desesperançado, de desistência. Essa existência simultânea de sentidos, de estima e desdém, nos leva a considerar a presença do duplo na composição de sinha Vitória. Há uma sintomática ruptura com o estereótipo predominante no que se refere à descrição ou representação da mulher, em especial a nordestina, cuja imagem foi sempre esfumaçada pela tradição patriarcalista brasileira e seus valores. Por um lado, essa ruptura, diferentemente de outras personagens contemporâneas a ela, se configura a partir da influência exercida por sinha Vitória no espaço familiar, dando ênfase a seu papel intelectual, referencial e decisório, mesmo com a força opressiva do sistema social vigente.
Em Eu, Kalunga (2005), de Custódia Wolney, também expressa a partir de uma variação ortográfica um recurso importante para denunciar a marginalização sofrida pelos quilombos brasileiros, espaço de resistência à escravização e ao racismo, além de campo de afirmação afro-brasileira, por excelência. Aproximando-se ao máximo do cotidiano da comunidade Kalunga, a escritora construiu a essência da personagem Bernadete, protagonista de uma voz narrativa reveladora: “Eu fiquei pensando nas histórias que meu bisavô Nhô Tobias contava e na origem do nosso nome Kalunga. Para os africanos, Kalunga era uma palavra muito ligada às nossas crenças religiosas e se referia ao mundo de nossos ancestrais, pois acreditávamos que deveríamos prestar culto aos nossos antepassados porque era deles que vinha a nossa força. Conforme Nhô Tobias dizia, o mundo era uma grande roda cortada ao meio, e, em cada metade havia uma grande montanha, na qual uma ficava com o pico virado para cima e era o mundo dos vivos. À outra montanha, com o pico virado para baixo, representava o mundo dos mortos. As montanhas eram separadas por um grande rio que os primeiros africanos, trazidos para o Brasil como escravos, chamavam de Kalunga. Portanto, Kalunga era um lugar de passagem onde os vivos poderiam estar em contato com a força de seus antepassados. Quando meus ancestrais refugiaram-se na Chapada dos Veadeiros, onde o grande rio Paranã atravessava todo nosso território, começamos a dar um outro sentido à palavra Kalunga. Era o rio que protegia nosso Quilombo das maldades do homem branco e da escravidão, portanto, para nós, o rio Panamã passou a ser, como na África, o rio que separava a vida e a morte.
Sentia-me protegida, estava deixando para trás o rio Paranã, o protetor de nosso Quilombo e, agora, tinha medo de que pudesse, de alguma forma, ser escravizada por uma civilização que eu desconhecia e ser tratada como menor. Hoje sei que calunga, escrito com “c”, quer dizer coisa pequena, inferior, como o ratinho camundongo que no nordeste do Brasil se chama calunga ou catira e que os colonizadores portugueses chamavam o negro de calunga, associando-nos a um ser inferior a eles”.
Os romances de Graciliano Ramos e Custódia Wolney manifestam o verdadeiro interesse em compreender e focalizar os nossos problemas, bem como o de estudar a realidade brasileira. Na temática, Vidas Secas (1938) e Eu, Kalunga (2005) penetram em uma problemática social para expô-la em um quadro literário e, por isso mesmo, estético. É uma afirmação legítima porque reflete a incalculável significação a ser considerada pela tomada crítica no documentário da disparidade social do país, em que o sexismo, o racismo e a luta de classes ainda atrapalham a expressão autêntica e respeitosa da identidade e da alteridade que pluralmente nos caracteriza.
* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, formado pelo UniCEUB. Poeta. Doutor e mestre em Estudos Literários pela UFMG. Graduando em Letras pela UnB.
** Desenho feito pelo ilustrador gaúcho Eloar Guazzelli. Disponível em: http://gazetaweb.globo.com/gazetadealagoas/noticia.php…. Acesso em 26 dez. 2017