Entrevista com Custódia Wolney
Ediney Santana entrevista Custódia Wolney
Ediney Santana- Você escreve sobre fatos históricos, como é viver o presente mergulhada em vivências passadas?
Custódia Wolney- Ao escrever um romance com pano de fundo histórico, deixo-me envolver totalmente pelo contexto que estou abordando. Vivo intensamente meus personagens. Vibro e sofro com eles.
Sou fiel à historicidade brasileira. Muitas vezes, sinto-me como um pintor que se senta à frente de uma paisagem e transpõe para o papel tudo que sua sensibilidade o permite ver. É assim que faço com o resgate da História. Sendo ela um passado distante, debruço-me sobre livros em longas pesquisas até que me perceba vivenciando o que outras pessoas já viveram ao longo do tempo. Ao deparar-me com um contexto presente, vou ao encontro do fato até que ele se torne parte da minha vida.
Escrever um romance pautado em uma vertente histórica, é ter a oportunidade de conhecer as entranhas do Brasil e quanto mais escrevo, maior fica a percepção de que minha caminhada está apenas começando neste meu imenso e amado País, rico em sua pluralidade cultural, fruto da miscigenação que se traduz no encontro de diferentes raças pulsando no mesmo coração brasileiro.
Ediney Santana- O romance histórico contribui em que ou quais aspectos para entendermos o legado cultural, artístico, político e religioso do nosso povo?
Custódia Wolney- O romance, que tem como compromisso resgatar a historicidade brasileira, contribui para fortalecer fatos históricos relevantes, permitindo ao leitor o acesso a acontecimentos passados de uma maneira lúdica e prazerosa. Permite o resgate do legado cultural dentro do contexto socioeconômico do enredo em tela, levando o leitor a viajar no tempo e se envolver com o ambiente artístico, político, religioso e tantos outros aspectos inerentes à época que o romance aborda. Com isto, o leitor constrói seu próprio conhecimento sobre a temática da obra, tendo condições de formar sua opinião crítica sobre o tema.
Ediney Santana – Muitas pessoas dizem que a história se repete. Você como romancista histórica tem essa percepção?
Custódia Wolney- Em alguns aspectos, sim. Principalmente quando se observa os avanços e retrocessos políticos e as temáticas nas quais a sociedade continua envolvida. Como exemplo disto, posso citar o meu livro Sombras da Revolta, onde no período regencial brasileiro, os excluídos se uniram em busca de melhores condições de vida e dignidade. Os partidos políticos da época, de acordo com seus interesses, tentavam manipular o movimento social, para atingir seus anseios partidários. Hoje, a sociedade continua na luta por seus direitos sociais em diferentes esferas, e, infelizmente, o que percebo é que o jogo político continua, só que em maiores e avassaladoras proporções.
Ediney Santana- Como manter a preocupação histórica ao narrar de maneira ficcional acontecimentos que envolvem tantas questões e interrogações? Ou para o romancista não cabe o papel de “arqueólogo” de alguma verdade ou verdades?
Custódia Wolney- Como disse anteriormente, sou fiel a historicidade brasileira. Traço o perfil psicológico de meus personagens de acordo com as temáticas e questões vivenciadas no contexto social abordado. Construo enredos ficcionais, porém o pano de fundo histórico é respeitado, e para tanto, antes de debruçar-me no desenvolvimento do romance, realizo várias pesquisas sobre o tema, construindo meu próprio conhecimento crítico sobre o assunto. Porém quando a obra está pronta, o leitor é soberano, dono de seu entendimento. Sua imaginação contribui para enriquecer a obra, uma vez que sua sensibilidade o leva a perceber mensagens que não foram escritas, mas estão escondidas entre as linhas, esperando que cada um dê a elas o seu significado pessoal. E eu, enquanto escrevo, dando vida aos meus personagens, vibro com suas conquistas e sofro com suas perdas.
Ediney Santana- Seus romances tem como tema a história afro-brasileira. O que te tocou, o que te move ou o que te levou a mergulhar neste universo tão rico, no entanto ainda tão marginalizado nesta nossa sociedade?
Custódia Wolney- A temática afro-brasileira sempre despertou em mim grande interesse. Quando eu viajava, seguindo rumo aos municípios de Cavalcante, Monte Alegre e Teresina de Goiás, contemplava, à distância, aqueles morros e serras, e, a cada viagem sentia aguçada em mim uma vontade genuína de ir além das estradas e desvendar os mistérios que envolviam uma comunidade que vivera praticamente em situação de isolamento, por longos anos, desde o tempo da escravidão. Movida por esta curiosidade, despertou em mim o desejo de conhecer aquele universo quilombola. Foi assim que escrevi meu primeiro romance sobre a temática afro-brasileira, que se materializou no livro Kalunga.
Ediney Santana- Quantos romances você já publicou?
Custódia Wolney- Já publiquei quatro romances. Todos contendo como pano de fundo um contexto social vivenciado no Brasil. Meu primeiro livro foi O preço de um sonho, que aborda os bastidores da construção de Brasília, em uma visão candanga e humanitária. O segundo, foi o livro Kalunga, que traz meu olhar sobre a comunidade quilombola situada no norte do estado de Goiás, na exuberante Chapada dos Veadeiros. Meu terceiro romance, Sombras da Revolta, resgata o período regencial brasileiro e a luta de classes pela igualdade social. Tem como pano de fundo a revolução da balaiada. Meu quarto romance, Sina Traçada, tem como objetivo o fortalecimento da história de luta e liberdade do nego no Brasil, e traz à tona a revolução dos Malês, ocorrida em Salvador, no ano de 1835. Este livro foi contemplado pelo prêmio Oliveira Silveira da Fundação Cultural Palmares e Ministério da Cultura, tendo seu lançamento ocorrido no dia 22.08, na Caixa Cultural Brasília, e, dentro da programação da Fundação Cultural Palmares, será lançado em outros estados brasileiros, onde o próximo lançamento já está agendado para o dia 13 de setembro, no Rio de Janeiro.
Ediney Santana- “Sina traçada”, romance seu, foi lançado recentemente. O título é instigante. Bob Dylan em “Blowin in the Wind”, perguntou: “quantos caminhos um homem deve andar para que seja aceito como hoje?” Te faço agora a mesma pergunta.
Custódia Wolney- Sim, cada história de liberdade tem seu caminho a ser trilhado. Isto é pessoal e está diretamente relacionado com o desejo de mudança inerente a cada pessoa. Esta resposta está nas páginas do romance Sina Traçada e deixo que o leitor, ao ler o livro, dê seu significado pessoal e o impulsione na busca de seus próprios objetivos.
Ediney Santana- Fale um pouco mais sobre “Sina traçada”.
Custódia Wolney- Sina traçada é um romance que aborda a revolução dos Malês, ocorrida em Salvador, no ano de 1835. Verdadeiros guerreiros africanos que, chegando ao Brasil, não se curvaram à escravidão e lutaram até as últimas consequências pelo direito de liberdade, dignidade e igualdade. Pelo direito de professarem sua fé e ideologia de vida. Os escravizados Malês eram negros convertidos ao islamismo e que se comunicavam em árabe. No peito de cada um, a crença aos orixás continuava viva, o que contribuiu para congregação de diferentes crenças na Bahia, que favoreceram a vasta diversidade cultural brasileira. No enredo, Thomaz, personagem principal, sentiu-se traído por si mesmo ao ver-se apaixonado pela esposa de seu feitor: Uma mulher que para ele representava a personificação de uma classe que ele bravamente combatia. Nesta obra incito no leitor a vários questionamentos, entre eles se é possível o amor sobreviver a preconceitos, diferenças sócias e religiosas.
Ediney Santana- Você conhece a história de “Lucas da Feira”? Se não, deixo aqui a dica.
Custódia Wolney- Sim. Já li um pouco a respeito de sua vida. No período regencial brasileiro, muitos escravizados se rebelavam contra a situação em que viviam. A revolta dos oprimidos era grande, e isto se percebe claramente nas diversas rebeliões ocorridas nas diferentes regências brasileiras. Lucas da Feira, apesar de ter sua história de luta na Bahia, se enquadra perfeitamente dentro dos personagens de meu livro Sombras da revolta, que em busca da liberdade e junção de diferentes ideologias em um mesmo grupo, cometiam barbáries, na maioria das vezes, fruto da insatisfação com o sistema dominante. Porém o que cada um deles tinha em comum era o desejo de liberdade e igualdade de direitos. Almejavam a mudança e lutavam o que tinham em mãos e da única forma de sabiam, mesmo que para isto, precisassem de fazer uso da violência.
Ediney Santana- Quais autores contemporâneos fazem parte da sua história enquanto leitora?
Custódia Wolney- Tive várias e maravilhosas referências literárias. Tudo começou, ainda no seio da escola, quando éramos conduzidos a ler e conhecer as obras de escritores brasileiros renomados. Nas obras de José de Alencar, sentia-me envolvida em seus enredos, em suas descrições minuciosas do ambiente temporal seus romances, que me sentia parte do cenário. Para mim, são inesquecíveis seus romances O guarani, como também Iracema. Com Machado de Assis guardei sua maneira de relatar eventos político-sociais de sua época, a exemplo de Memórias póstumas de brás cubas e Dom Casmurro. Leituras maravilhosas! Outra escritora que me fascinou foi Raquel de Queiroz, onde descrevia a seca nordestina e a saga dos retirantes, de maneira apaixonante e envolvente, a exemplo de O quinze. Em todos seus romances havia invariavelmente, a presença forte de personagens femininas que não se curvavam à insubmissão de sua época. Não posso deixar de citar meu querido Jorge Amado, que me apresentou a Bahia de forma deslumbrante. Capitães de Areia, Cacau, Gabriela cravo e canela, foram leituras que tive dificuldade de me separar do livro, na ânsia de saber o final do enredo. E o meu respeito a Gabriel García Márques, escritor colombiano, que me emocionou com seu livro “Cem anos de solidão”. São Tantos! Rubem Alves, Ariano Suassuna. Cada um, e tantos mais, contribuíram para a construção do meu fazer literário.
Ediney Santana- Qual é o processo de escolha dos temas ou personagens que você romanceia?
Custódia Wolney- Necessariamente eu preciso me sentir envolvida e ter interesse sobre o tema ao ponto de despertar em mim algum sentimento que alavanque meu desejo de escrever sobre o assunto. Os personagens são construídos de acordo com o pano de fundo social que está sendo abordado, com o compromisso de ressaltar o contexto e interfaces políticas, culturais e sociais necessárias ao desenvolvimento do romance.
Ediney Santana- Há ainda espaço para o amor, amor incondicional, em uma sociedade cada vez mais na qual o “ter” precede a essência?
Custódia Wolney- Com certeza. O amor faz parte da essência do ser humano. Muitas vezes fica preterido e abafado frente à conjuntura social que privilegia o ter, a disputa, o ódio, a vingança, e tantos outros sentimentos que são vastamente propagados na vida e reforçados pela mídia, filmes, novelas e outros meios de comunicação. Mas dentro de cada um de nós existe a chama do amor, a fonte de luz, que se revela em cada ato de solidariedade, de amizade, de ternura, como vemos em várias situações onde multidões se unem para ajudar aos acometidos pela fome, miséria, acidentes naturais. E tantas outras intempéries. Pessoas desconhecidas que, como anjos, estendem as mãos para ajudar. Isso é amor, isto é, de fato o que somos.