Marcos Fabrício Lopes da Silva
ARTIGO/Brasília-DF, 26/12/2017:
EU, KALUNGA
Marcos Fabrício Lopes da Silva*
Disse o psiquiatra britânico Ronald David Laing, no livro O eu e os outros: o relacionamento interpessoal (1986): “não podemos fazer o relato fiel de ‘uma pessoa’ sem falar do seu relacionamento com os outros”. Cada indivíduo se completa e se efetiva no relacionamento com os que estão à sua volta, em seu convívio. É na relação entre o “Eu” e o “Outro” que se constrói a identidade do “Eu”. Não esqueçamos que o filósofo francês, Félix Guattari, em Micropolítica: cartografias do desejo (1986), diferencia identidade e singularidade: “A singularidade é um conceito existencial; já a identidade é um conceito de referenciarão, de circunscrição da realidade a quadros de referência, quadros estes que podem ser imaginários”. É verdade que a subjetividade socioeconômica submete nossa singularidade e influencia nossa práxis. No entanto, não somos apenas reflexo do meio. A nossa capacidade em interagir com o meio também nos dá as condições não apenas de compreendê-lo criticamente, mas também a possibilidade de nos libertarmos das suas amarras e transformá-lo. Para tanto, faz-se necessário zelar pela expressão da alteridade.
A alteridade engloba a qualidade ou estado do que é outro ou do que é diferente. Um dos princípios fundamentais da alteridade é que o homem na sua vertente social tem uma relação de interação e interdependência com o outro. A alteridade implica que um indivíduo seja capaz de se colocar no lugar do outro, em uma relação baseada no diálogo e valorização das diferenças existentes. Tomando por base o livro de Custódia Wolney, Eu, Kalunga (2005), encontramos a literatura como desvio da norma, capaz de promover uma construção discursiva que contribui significativamente para a construção da alteridade.
Pode ser reconhecida a citada obra como romance histórico, mas também enquanto “alterbiografia”. Essa lógica se impõe quando a reconstituição de uma vida e a recuperação de uma voz se dão pela intermediação do discurso de um outro. Desse modo, em nota da autora: “escrever sobre a comunidade Kalunga foi fruto do amadurecimento de alguns anos de pesquisa e da vontade de conhecer mais sobre esta gente tão forte e guerreira. Sempre que eu viajava, seguindo rumo aos municípios de Cavalcante, Monte Alegre e Teresina de Goiás, contemplava, à distância, aqueles morros e serras, e, a cada viagem, sentia aguçada em mim uma vontade genuína de ir além das estradas e desvenda os mistérios que envolviam uma comunidade que vivera isolada, escondida do mundo, por longos anos, desde os tempos da escravidão”. Por isso, também o referido livro está dentro de uma tradição de escritos que performatizam “o outro como si mesmo”.
Ao passo que o sujeito escreve sobre si, já aí ele opera um movimento de projetar-se como um outro, para então penetrar a própria alma; e por também revelar uma coletividade, visto que, conforme Mikhail Bakhtin, o sujeito se constitui pela linguagem e em sua práxis social. A partir disso, empreendemos uma análise de Eu, Kalunga como um jogo de espelhos, num eterno movimento de girar o caleidoscópio do eu. Por meio da personagem Bernadete, ou Berta, a narração encontra nela uma referência para levar a cabo o empenho autoral em conhecer melhor a comunidade Kalunga:
“Todas as tardes, quando o sol se põe atrás das serras avermelhando o entardecer, sento na cadeira de balanço, que fica na varanda de nossa casa, e, ao longe, posso ver os morros e serras distantes, até aonde a vista alcança. Tudo verde, tudo paz. Com o olhar fixo nesta paisagem, me transporto a outros tempos. Fecho os olhos e me vejo menina, moleca, correndo entre os vãos das serras, despreocupada, segura e tranquila. Fico a pensar na saga do meu povo; meu povo que fez do chão da mata a sua terra, o seu forte; meu povo que – há mais de séculos, desde quando, no Brasil, o negro era considerado matéria bruta que se comprava no mercado – vem procurando a igualdade que, embora seja sua por direito, lhe foi arrancada das mãos por uma sociedade que acreditava que o valor da pessoa estava, entre outras coisas, na cor da pele”.
Escrever-se com a mão dos outros enquanto escrevemos os outros com nossa própria mão. Por isso, espelha-se em Eu, Kalunga uma etapa de transição (“negrismo”) entre a literatura de perspectiva etnocêntrica, em relação ao negro, e a chamada literatura afro-brasileira. Dentro desse horizonte de expectativas, revela-se no livro um ponto de vista não inteirado da “negritude”, porque hegemonicamente a sociedade brasileira foi tomada por uma abordagem depreciativa dos movimentos negros:
“Trocávamos a farinha de mandioca e outros produtos pelas coisas de que precisávamos. Trazíamos, também, algumas vezes, carne de sol das cidades ao pé da serra, e havia, ali, um grande preconceito contra nós. Eles nos tinham como selvagens, feiticeiros, preguiçosos e sujos. Porém as pessoas que nos rotulavam não conheciam nossa luta, nossa vida, nossos costumes, falavam por falar, aumentando a distância entre nós. É certo que não nos mantínhamos muito limpos, principalmente os homens, pois a própria caminhada da descida da serra, sem estrada, por entre as árvores e, em outras vezes, o sol muito forte, deixava-os com a aparência realmente suja e desajeitada, mas isto era devido às grandes dificuldades com que passávamos nos vãos das serras e também às poucas noções de higiene que tínhamos até então”.
O mérito da obra de Eu, Kalunga encontra-se na visibilidade dada à estigmatização sofrida historicamente pelos negros. Mesmo assim, diante da herança maldita do racismo, “africanos e seus descendentes construíram sua história de liberdade longe dos grilhões da escravatura, mantendo sua identidade, costumes e tradições afro-brasileiros que ainda hoje são cultuados nos vãos das serras, reduto dos remanescentes dos Quilombos no Brasil, protegidos pelas águas do rio Paranã”, como bem ressaltou Custódia Wolney.
* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, formado pelo UniCEUB. Poeta. Doutor e mestre em Estudos Literários pela UFMG. Graduando em Letras pela UnB.
** Foto da escritora Custódia Wolney.
*** Foto da capa do livro “Eu, Kalunga” (2005), de Custódia Wolney.